XVI

E haverá silêncio.
Um silêncio e um milagre. Como se fosse um sinal.
Porque, do Egito, da Atlântida,
da Hélade, da Babilônia,
da Galileia e da China Imperial
partirão os escravos, os explorados, os loucos,
os guerrilheiros e as múmias
e todos os que padeceram doenças, martírios e enxovalhos
debaixo de púlpitos, tribunais e monarquias.

Os que estiverem nos bares,
nas estações, nas favelas,
nos hospitais, nos garimpos,
nas carruagens, nas fábricas

Os que estiverem nas festas,
nos caminhões, nos moinhos,
nos trigais, nos campanários,
nas chaminés, nos comícios

Os que estiverem nas praças,
nas serenatas, nos diques,
nas charnecas, nos bilhares,
nos cafezais, nas charruas

Os que estiverem não fujam,
não disfarcem, não adiem:
o vento soprou mais novo,
agora é prova de fogo.
Revolução. Labirinto.

XVII

O sol buscou refúgio na última galáxia.

A caminhada persiste até o fim dos meridianos e desertos, paralelos e países.
O vento engole as cidades arrepiando os telhados.
Mas, não subsiste medo, nem solidão, nem tristeza.

Todos vão. Ninguém resiste.
A maratona evolui através dos sete mares,
sustentando-se nos ares,
ou de mãos dadas com a terra.

São antílopes e focas,
golfinhos e pernilongos,
açougueiros e leprosos
tubarões e petroleiros.
Arraias, rãs e cachorros,
barões, balões e baleias,
cavalos marinhos, elfos,
hussardos e camundongos.

No ar. No mar. E na terra.
Baralho de barafunda. Emboscada do universo.

Do fundo do Apocalipse  horizonte submerso,
submarinos acordam galeões adormecidos.

Os Vikings ressonando, aparvalhados navegam.
As carantonhas nos barcos esboçam longos gemidos.

Cleópatra e Medusa, descalças seguem por terra.
As cobras de seus cabelos se enroscam nos seios dela.

Os Tugues (laço da morte) tropeçam entorpecidos
em gigolôs e nazistas, cascavéis e rezadeiras.

No céu, um carro de fogo: Elias, nauta do tempo.
Profeta em cama de gelo planando no fim do mundo.

XVIII

Silêncio. Escuro. E a pergunta.
A procissão e o mistério prosseguem na superfície.
Mas, não subsiste medo, nem corrosão, nem suspeita.
O espaço. O cortejo. O escuro.
Os passos recompassados de todos os que caminham
ignorando e seguindo:
Os profetas e os caciques
e deuses e heróis e putas
e surdos e saltimbancos
e sádicos e sambistas
feras, frades, freiras, fracos
filósofos e fiscais
juízes, rabinos, rábulas
funcionários e escrivães
mentecaptos, capachos
ladinos, ladrões e atletas
marqueses, condes, pedreiros
costureiras e ministros
policiais e viragos
jornalistas, analistas,
estagiários, românticos,
maconheiros, normalistas
corretores, corredores
propagandistas e ateus
veterinários, filantes
artistas, químicos, tísicos
pescadores, milionários
missionários, mísseis, missas
demissionários e omissos
astrônomos e gastrônomos
catequistas e taquígrafos
mordomos, bajuladores
diretores e ratinhos
bancários, bestas, fascistas
emboabas, baobás
pastorinhas, facadistas
construtores, detratores
tradutores e tratores
militares, oculistas
engolidores de espada
amoladores de faca
arrombadores de cofres
palpiteiros, moralistas
clientes, crentes, crianças
escafandristas, ourives
gramáticos, tico-ticos
mercenários, marceneiros
verdugos e verdureiros
professoras e madrastas
moleiros, moles, moleques, leques, mós e leiloeiros
marxistas e maquinistas
esportistas e abobrinhas
estrategos, traficantes
ociosos e ansiosos
sátrapas, sapateiros, trapaceiros e trapistas
encantadores de cobras
cobradores e barítonos
protestantes e porteiros
lambisgóias e lombrigas
facínoras, sacristãos
pierrôs, prestamistas, cornos
puritanos, anarquistas
congregados marianos
cafetões e cafelistas
censores e ascensoristas
rainhas, reis e galinhas
saracuras e espantalhos
pediatras e pedintes
paraplégicos e alérgicos
curtidores e coristas
sifilíticos, políticos
ciclistas e pipoqueiros
comerciantes e esquilos
católicos e cristãos
salafrários e sacrílegos
cineastas e azeitonas
sine-qua-nons e sineiros
vigaristas e vigários
invejosos e aluninhos
astronautas e tatus
fariseus e carvoeiros
pintores, pintos, piranhas
farândolas e fandangos
centuriões, curiangos
debutantes e gorilas
locutores, surdos-mudos
avalistas, vira-latas
paraquedistas e alcoólatras
racistas e estupradores
viúvas e uvirunduns
caipiras e caiporas
morubixabas e bichas
amadores, mamadores, ouvidores e vidrilhos
embaixadores, baixotes
chupins, cha-cha-cha e chatos
cardiologistas, lojistas
barbeiros e barbatanas
flibusteiros e arcebispos
capangas e pangarés
valentes, levantes, lentes
patriotas e avestruzes
ventríloquos e ventrícolas
herdeiros profissionais
liberais e libertinos
matemáticos e mate
dissidentes e dentistas
bem-te-vis e detetives
acadêmicos e micos
varejões e varejistas
direitos e advogados
engenheiros ou relógios
agentes e viajantes
catedráticos, titicas
baratas e burocratas
vendedores e vendidos
agiotas e jurados
gente bem e gente boa
sogras, sapos, ogros, grilos, agricultores, grevistas
fotógrafos e elefantes
primeiros da classe e cônegos
poetisas e mulheres
prolixos e lixeiros
croquis, crocotós, croquetes, prós e contras, contrarregras
contratados e tratantes
ritmistas, logaritmos, marítimos e retretas
filhas de papai
filhas-de-maria
filhas-de-peixe
filhas-da-puta
latinistas e stalinistas
vegetarianos, presbiterianos
latifundiários e leiteiros.

Cavalo bravo no céu. Zarabatana de estrela.

XIX

De repente, o abismo.
O primeiro homem de uma civilização perdida, jamais conhecida, nem sequer suposta, é expelido entre labaredas e cinzas de um vulcão que acabava de nascer.

A hora é mágica, fantástica, pacífica.

Um faixe de arco-íris anuncia a primeira estrela aparecida após o êxodo do sol.

É uma estrela cadente?
Ninguém sabe o que é,
nem se admira
nem chora,
nem sorri,
nem range os dentes,
nem pergunta,
nem comenta.

A hora é mágica, e as gargantas ao mesmo tempo se agitam, as cordas vocais se animam
e aparece uma canção.

As bruxas e os mendigos
os oprimidos e os sábios
os alfaiates e os tímidos
todos cantando, cantando
e olhando para o céu.

É uma estrela caindo.
É ouro é diamante.
É pérola é madrepérola é chuva
é meteoro
é tudo é nada é gemido
é um pedaço de luz.

É uma estrela, um cometa,
um planeta, um meteoro.
É um disco voador.
Todos esperam sem pressa,
como se nada importasse.
Mas, o silêncio voltou.
O canto murchou nos lábios.

Da estrela desce uma forma jamais vista por olhos humanos. É um astronauta? Um pirata? Uma boneca de louça? Uma garrafa de vidro? Um invasor? Uma flor? Todos enxergam com nitidez e precisão, mas estava escrito que o cérebro humano não fora planejado para identificar, comparar ou rotular aquela entidade estranha.

Mas, de repente, todos viram duas mãos resplandecentes líquido elétrico solavanco cósmico metralhadora fluídica.

E o que acontece depois nunca será registrado nos papiros nos livros ou computadores. Porque todas as culpas e remorsos benefícios e fracassos se confundiram e se anularam.

E não ficou pedra sobre pedra. E as desavenças e as crenças e os monumentos e as taras foram extirpados e engolidos pelo mesmo rodamoinho desencadeado pelas mãos terríveis.

XX

Um dia, o sol voltou a brilhar, mas ninguém notou porque quase tudo havia deixado de interessar e perdera o antigo sentido. E os mortos se reuniram aos vivos e constatou-se que nunca mais nasceu ou morreu alguém sobre a face da terra e todos se esqueceram de tudo o que souberam fizeram ou sentiram e agora estão embalados embalsamados monopolizados envolvidos por uma ideia fixa. Que virou o centro de tudo. Que virou o centro do mundo. Que não tem nome cheiro cor

São Paulo Outubro 1974

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