VI

Silêncio nas cerejeiras. Nos fiordes. Nas giestas.

No Oriente, os muçulmanos e budistas, os Veneráveis Adoradores do Fogo, os trezentos mil deuses da Índia e os brâmanes e os párias e a interminável legião de prosélitos das diversas seitas que proliferam no Japão, na China e na Pérsia, acenderam archotes, lanternas, lamparinas, candeias e candelabros porque um terremoto se juntou à insinuação do vento do deserto.

E antigas profecias, alfarrábios e papiros renasceram na memória dos monges octogenários. E velhas arcas foram removidas dos sacrários proibidos. E um a um, os mistérios indevassáveis emergiram do ostracismo e obscuridade dos milênios.

O Superior da Venerável Ordem paramentado pelo capuz vermelho que a ocasião impunha, empunha tremulamente um alfanje, e ordena que os fieis cubram a cabeça de cinzas e entoem os cânticos habituais de expiação.

E um a um, os lacres e selos esparramam-se ao chão e os três pergaminhos que existiam foram desvendados e vasculhados e assimilados e difundidos. E os que puderam ver e ouvir o que estava escrito compreenderam, por fim, que deveriam se misturar à procissão que havia e a que ninguém fugia.

VII

A hora é mágica. Letárgica. Terrível.

Os mortos se reúnem aos vivos e milênios se convivem. Mas, não se chocam: desfilam.

Os árabes e os hebreus, os sumérios e caldeus, lemurianos e acádios amortecidos levitam, aliviados do peso das sagas e das conquistas, das pilhagens e pelejas.

As amazonas galopam em cavalos antropófagos escudo e lança na mão corações enrijecidos. Os tártaros de Kublai Khan, amados até os dentes, ardentes como meninos esparramam-se entre elas. Batalha de corpo a corpo. Caçada entre macho e virgem.

(Ela, correndo, tropeça. Ele espera. Ela se esconde. Ele acha e quase pega. Ela escorrega e escapole, pula pedra, pula cerca, pula no rio toda nua, sai na outra margem, respinga, resplandece, insinua. Ele aparece. Ela corre. Ele alcança, captura. Ela morde, foge, cansa, rola no chão, desfalece, finge que chora, se rende. Ele cavalga seu corpo. Ela deixa, humildemente. Ele dança, bate, beija. Ela sua e agradece. Ele se lança em semente. Ela delira e adormece.)

Jesuítas e paxás, califas e marajás, czares e mandarins deslizam introvertidos. Silenciosos. Soberbos.

Os fenícios e os atlantes, os dinossauros e os hicsos, os etruscos, os hititas, os pelasgos e os assírios misturam-se às ratazanas, esquimós e fiandeiras num cordão impessoal, enregelado, passivo.

Arquimandritas e magos e cleromantes e druidas, necromantes e faquires, hierofantes, sibilas, pajés e sacerdotisas ― olho no olho, pudor de bruxo, poder e medo. A fórmula cabalística sabida e silenciada. Conciliábulo mudo ― por respeito e gentileza.

O carrossel de prodígios. A poeira de fantasmas.

VIII

Os que estiverem nas grutas e cataratas,
nos regatos e nos pântanos,
nas florestas e nas casas,
no submar, nos navios,
nos sacrários, nas masmorras,
nos calabouços, nas praias,
Nos patíbulos, nas rochas,
Nos aviões e helicópteros,
prostíbulos, cidadelas,
nos dramas, nos cataclismas,
nas cordilheiras, nas dunas,
nas enseadas, nas docas,
nos descampados, nos clímax,
nas colinas e nas curvas

Os que estiverem nas minas,
nas filas, nas oficinas,
nos tribunais, nas tribunas,
tabernáculos, tabernas,
entabulando tabelas,
pescando pérolas raras,
desafiando duelos,
planejando falcatruas, emboscadas ou motins,
pretendendo qualquer coisa,
engolindo cobra viva,
caminhando, perguntando,
respondendo, procurando

Os que estiverem, não fujam,
não disfarcem, não adiem:
procurem pela menina de cabelos cor-de-bétula,
que descobriu o segredo do canto dos rouxinóis.

IX

Silêncio nos Monastérios. Minaretes. Mausoléus.

Até que os sarcófagos e as catacumbas libertaram os santos e as fadas e as pitonisas e os Cavaleiros das Oitocentas Cruzadas e os antigos heróis que a memória dos Maias, dos Incas e Aztecas imortalizou em narrativas épicas, em volta das fogueiras acesas.

E todos os faraós que investiram na vida após a morte ressurgiram da poeira e da neblina das pirâmides e das épocas. E o mesmo se sucedeu com os seus servos e servas, rebanhos e pedrarias, amuletos e arquitetos.

 X

É a hora do mito.
É a hora do rito.
É procissão. É processo. É princípio meio e fim.

À frente, papas e esfinges,
os gordos e os anões,
rinocerontes, donzelas,
tartarugas e sultões,
patriarcas, cardeais, gladiadores e bispos,
palhaços e trapezistas,
eunucos, malabaristas, grão-vizires e ateus.

Não é noite. Não é dia.
É uma estrela vadia, enviesada, vazia.
É raiva de uma galáxia empanzinada. Rendida.


© 2022 Marcos Resende
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