ODES A CYARA


 Prepara-te para um tempo fora do amor.
Não dura muito a primavera do amor.
(Lindolf Bell) 

                              I

                   Folha branca,
                   alma branca,
                   sangue rubro.

Em tua alma folha branca cor de leite,
traço traços de um amor que é vivo e rubro.

                   Alma boa,
tão pura e branca quanto o sorriso de teus dentes brancos;
tão rubra e cálida quanto o sorriso de teus lábios rubros.

Amar tua alma, ó Cyara, é te amar
no que transportas de mais alvo e teu:

                   Folha branca,
                   alma branca,
                   sangue rubro. 

                              II

Eu vi teus olhos luz. Eu vi teus olhos musgo.
Teus olhos viram os meus. Enfim, nós os fechamos.
                   Se no falar dos olhos
                   existe língua viva,
mais eloquência existe no falar das trevas.

                   Porém, mais que no escuro,
eu vi no teu olhar a lâmpada do amor.             

O verde, que é do mar, estava nos teus olhos
                    e ele dizia: sol.
O verde, que é da relva, estava nos teus olhos
                    e ele ordenava: vida!

                    O verde clorofila,
                    olhar de primavera,
                    a clorofila sol,
olhar de vida sol sem pálpebras de morte
para quebrar os sonhos,
sem outono noite e nada mais, além
do amor dizendo vida, do amor dizendo verde,
do amor dizendo sol, calor e primavera.

Eu vi teus olhos luz. Eu vi teus olhos musgo.
Teus olhos viram os meus e se falaram os dois.
Eu vi no teu olhar ― mais do que a vida ― o amor.

                           III
Teus olhos verdes e primaveris,

ó Cyara,
são duas verdes chaves para abrir tua alma;
verdes sondas;
verdes primaveras
cujas verdes plantas lembram-me os meus sonhos:
crenças de capim.

Brilho mar,
estrelas clorofila;
olhos folhagem verde mostruário
do que tu guardas no mais dentro teu:
alma que é branca, coração de açúcar
e amor intenso, de vermelho vivo.

Amar teus olhos é te amar também,
no que de verde e de mais belo tens:
Olhos de musgo, verdes chaves da alma;
estrelas verdes e primaveris.

                        IV
Cyara,

a tua voz é mais que uma canção,
é mais do que um poema,
é a tua própria alma a diluir-se em som.

Cyara,
a tua voz é feita de ribeirões murmurejantes,
dos perfeitos ribeirões murmurejantes
a cantar sempre o mesmo canto,
de imperturbável e eterna calma de existir.

Cyara,
a tua voz é feita do cantar dos pássaros na primavera,
do tamborilar da chuva num telhado antigo,
do farfalhar das árvores ao soprar dos ventos.

Cyara,
a tua voz é feita do ronco da onda a se quebrar na praia,
do primeiro choro e último suspiro de um viver humano.
                     Melodia imemorial,
                     canção inecantável,
gorjear do rouxinol tão logo nasce o sol.

Cyara,
ouvir a tua voz é ouvir um ribeirão;
é ouvir a chuva, o choro, o vento, os pássaros,
é ouvir tua própria alma a diluir-se em som.

                          V

Cyara,
nos teus braços farei a minha casa
e ouvirei o som de teu amor.
Conhecerei tua voz ― será canção de ninfa;
conhecerás a minha ― será teu sol nascente.

Cyara,
em cada coisa em que a tua mão pousares,
em cada chão em que teus pés pisares
eu estarei também ― prometo ― eu estarei!
Terás em mim teu véu, teu teto, teu bordão.

Serei fiel.
Veremos madrugadas,
o sol brotar rompendo o azul do céu.
Andaremos juntos pela noite,
descalços, molhados pelo orvalho,
e amarei teu pente, tua roupa, teus livros, teu espelho...

Cyara,
meu amor total será só teu;
foste tu que conheci durante a primavera,
colhi de teu canteiro ao cair das chuvas,

é a ti a quem darei a vida, a seiva, o sol.

                            VI

Cyara, este é o último poema que me inspiraste:
canção de adeus ― canção de despedida,
canção de um amor-titã que hoje terminou.

Cantei os teus louvores e, se mais pudesse,
de novo os cantaria, foste grande em tudo!
Mas eu, cantor-cigano, sou volúvel, nômade...
E o meu amor-cigarra rompeu-se nos meus cantos.

O nosso amor floriu na verde primavera;
tornou-se, no verão, robusto, gigantesco,
mas, definhou no outono ao cair das folhas.

E hoje, que é inverno, sofro o seu findar;
meu coração é gelo; minha pena, tumba
onde se enterram todas as minhas crenças.

Cyara,
obrigado!
Obrigado por teus olhos, tua boca, por tua alma;
obrigado pelo amor que, enquanto esteve ardente,
foi pelo, imenso, agradável e bom.

E eu, que sendo homem, trago nos meus passos,
erros sem limite, feitos sem pensar,
te peço: ― Perdoa-me!
É um coração fogoso que não sonha muito
e parte a cada ano para um novo amor.

Cantei os teus louvores e, se mais pudesse,
de novo os cantaria, foste grande em tudo!
Mas eu, cantor-cigano, sou volúvel, nômade...

E o meu amor-cigarra rompeu-se nos meus cantos.

                                                                                                  São Paulo, 1966


© 2022 Marcos Resende
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